Touros
Pinturas a Óleo 2017 e em Desenvolvimento
Em 2017, ao ler uma matéria sobre a hipersexualização do homem negro no site Socialista Morena (1), deparei-me com o termo “Black Bull”, utilizado para se referir a homens negros em filmes pornográficos. No contexto desse mercado, a palavra “Bull” (Touro) é associada a indivíduos retratados como “comedores”, machos alfa que frequentemente aparecem em cenas com personagens “cuckold”.
O termo “cuckold” tem origem no comportamento do pássaro cuco, cujo macho aceita que a fêmea ponha ovos de outros machos no seu ninho. No contexto pornográfico, “cuckold” refere-se a uma prática em que um homem sente prazer ao ver a sua parceira ter relações sexuais com outros homens – os “Bulls” ou “Touros”.
O texto continua depois das pinturas.
Curioso, realizei uma breve pesquisa em um grande site de vídeos pornográficos, utilizando a palavra “Bull”. Constatei que os 20 primeiros vídeos relacionados eram protagonizados por homens negros denominados “Black Bulls” (Touros Negros), muitos usando sungas e coleiras de couro, em cenas de relações sexuais com mulheres brancas e loiras, sob o olhar de seus parceiros – na maioria, homens brancos.
À primeira vista, essa fantasia pode não parecer prejudicial para nós, homens negros, uma vez que vivemos em uma sociedade em que a masculinidade precisa ser constantemente reafirmada. Numa cultura em que a branquitude é o ideal, subjugar a mulher de um homem branco pode ser interpretado como um sinal de poder. Quantos de nós, homens negros, já ouvimos comentários como “E aí, Tripé?” ou “Opa! Negão, hein!”?
Eu, como homem negro, já gostei dessa ideia. Mas o que está por trás disso? Ser imaginado como viril e bem dotado numa sociedade machista e patriarcal, que celebra o macho alfa, muitas vezes nos cega para a desumanização dos nossos corpos e o abuso implícito nessa idealização. Esse fetiche reforça estereótipos e mitos que, há séculos, nos tratam como seres de sexualidade incontrolável e violentos, como animais de carga. Esses estereótipos, além de nos criminalizar, perpetuam a percepção de que somos criminosos natos e estupradores por natureza. Isso remete ao passado, quando homens negros eram tratados como escravos e reprodutores, como ocorreu com Roque José Florêncio, um escravo em São Carlos, no interior de São Paulo (2).
A ideia de que somos “Touros”, comedores, pode contribuir para o abandono de mulheres e filhos por parte dos homens, além de promover a violência como sinônimo de força, virilidade e potência, nos incentivando a lutar uns contra os outros e a nos autodestruir. Tornamo-nos, assim, uma ameaça, somada a tantas outras que o homem negro supostamente representa para a masculinidade branca – uma das bases de sustentação da nossa sociedade. Essas ameaças são frequentemente utilizadas, de forma consciente ou inconsciente, como justificativa para o nosso extermínio.
A ideia dos “Touros Negros” nos isola, tanto de forma real quanto simbólica, nos colocando em um lugar onde não podemos demonstrar inteligência, fragilidades, sonhos e, muito menos, oferecer ou receber amor. Muitas vezes, somos destituídos de nossa identidade, sendo vistos como todos iguais. Eu mesmo já fui comparado a Bob Marley, Mano Brown, D2, Seu Jorge, Mussum, Otelo, Itamar Assumpção, Desmond Dekker, Buiu, entre outros. Nossa identidade é frequentemente reduzida aos nossos falos, como no caso do ator ‘Kid Bengala’.
Por isso, decidi representar esses atores negros que interpretam os “Touros” através de seus falos. Passei a retratá-los através da pintura a óleo, buscando dar a mesma dignidade e tratamento que, no passado, eram dados aos retratos de nobres nas cortes. Assim, os falos pintados se tornam retratos.
Apesar do pouco progresso que já fizemos, noto que a representação de um falo negro através da pintura ainda choca e ofende. Nesse contexto, a pintura torna-se uma arma, provocando reações adversas. Alguns críticos chegaram a afirmar que essas obras são ofensivas, alegando que “não há história da arte” nelas. Mas como não há? Trata-se de pintura a óleo, com referências clássicas e de um nu – um tema amplamente explorado ao longo de toda a história da arte.
A provocação de retratar falos negros através da pintura a óleo, utilizando uma técnica clássica, desafia as normas estabelecidas e pode expor o racismo e a hipocrisia que muitas vezes se escondem por trás das críticas à arte que aborda temas raciais. O choque e a ofensa que essas pinturas causam em alguns refletem o desconforto em confrontar estereótipos e quebrar tabus em torno da representação do corpo negro.
E se a alegação de que essas obras “não contêm a história da arte” revelar um preconceito enraizado que desvaloriza as experiências e expressões artísticas negras, relegando-as a uma posição marginal ou “nao canônica”? Será que a arte, com seu poder de desafiar, questionar e expandir os limites do que é considerado aceitável ou “legítimo”, está sendo criticada justamente para manter a arte negra confinada a narrativas que não ameaçam o status quo?
Em resumo, o que parece estar escondido por trás dessa ofensa é o medo de encarar as realidades desconfortáveis do racismo, da desumanização e do poder dessas representações artísticas em expor e subverter as normas sociais. Ao desafiar essas normas, a arte cria um espaço para a reflexão e a possibilidade de mudança.
(Re)construindo imaginários: a conquista do retratismo negro
A exposição “Construção”, do artista visual Marcio Marianno, acolhida e exibida pelo SESC São Carlos, apresenta de forma poética, subjetiva e pitoresca, o percurso de um homem no campo das artes produzidas no Brasil.
À despeito da forte aversão do sistema hegemônico das artes visuais em reconhecer que devemos tratar de categorias sociais como gênero, cor, classe e suas intersecções, pois, nos permitem distinguir e ajustar as falhas residentes nele, realçamos que Marcio é um homem, um homem negro.
A cor da pele como qualidade que nos caracteriza tem sido manejada pela branquitude a fim de delimitarem os entendimentos do ser e de estar no mundo ocidental. Ou seja, a partir da cosmovisão eurocêntrica que qualifica e difunde as histórias, culturas, heranças dos povos brancos como superiores e involucradas na aura de verdade única.
Tal imposição ontológica transparece em todos os aspectos de uma sociedade ocidentalizada como a brasileira. Suprime, subestima, subjuga, grupos que não correspondem visualmente tanto à aparência quanto às práticas socioculturais do grupo que se outorgou a noção de padrão e universal.
Esses sentimentos e sensações recorrentes nas vivências de quem, cotidianamente se depara com instituições que naturalizaram o racismo como balizador das relações, do manifesto ao dissimulado, coloca a pessoa não branca no cruzo do entendimento de sua identidade.
Em 1903, o intelectual afro-estadunidense W. E. B. Du Bois, publicou The souls of black folk (As almas do povo negro), trazendo o termo “dupla consciência” ao se referir ao conflito gerado nas pessoas oprimidas em sociedades surgidas dos processos de expropriação territorial, cultural, corporal, do genocídio ao epistemicídio.
O conceito da “dupla consciência” se materializa nas obras que Marianno compartilha conosco em “Construção”, nas quais muitas personagens de suas pinturas realistas, executadas a partir de fotografias produzidas pelo artista, surgem sem faces como que com identidades suprimidas pela colonialidade.
É o saco de papel pardo, a luva de algodão, o capuz do agasalho, um ângulo específico, uma figura sangrada, dentre outros recursos que nos impedem o reconhecimento fisionômico. A subtração dos rostos de traços negroides metaforiza a interdição da negritude num país no qual a branquitude regula muitas das instâncias da vida, inclusive a da atribuição de valor positivo às pessoas negras.
Dominando com primazia a linguagem da pintura à óleo, dantes restrita às elites que acessavam o ensino formal nas academias de arte e, posteriormente, nas universidades e cursos livres, Marianno refaz um percurso de outros artistas não brancos que dominaram a técnica. Contudo, há em sua poética o interesse por expor fragilidades, silenciamentos, retraimentos, taciturnidades que incidem sobre pessoas negras devido às inúmeras circunstâncias do convívio social prenhas de abusos diários.
Marianno está (re)construindo imaginários sobre pessoas apagadas da história da arte brasileira, recolocando-nos na posição de centralidade. Desvela poética e paulatinamente as gradações de opressão, para nos proporcionar um retratismo negro que expressa a conquista de autoconfiança como ser humano e como artista visual. O psiquiatra martinicano Frantz Fanon, afirma em Peau noire, masques blancs (Peles negra, máscaras brancas), 1952, que “o negro não é um homem, é um homem negro”. Pedimos licença para atualizar essa frase a partir das pinturas e vídeo trazidas por Marianno, que se autoriza à celebração de sua existência como uma conquista: “o homem é negro e artista”.
por Renata Felinto 2023 para Exposição Construção
Marcio Marianno
Nasceu em 1978 em Santo André, município de São Paulo, é artista visual e educador profissão que ele compartilha com alguns dos artistas da exposição.
Sua pintura, de caráter naturalista, tem em comum com outros artistas desse elenco narrativas que consagram o protagonismo da pessoa negra a partir de sua própria imagem, em autorretratos que criam ficções, projeções poéticas a partir das quais, o particular se arroja à condição de universal. Assim como Luiz 83 sua formação não é devedora dos saberes derivados do ensino artístico formal, mas partilha e participa da tradição de pintores negros que, desde pelo menos o sec. XIX, realizaram projetos de consistente cabedal a partir de premissas não convencionais e não raro, adversas.
A pintura de Marianno denota o gosto pelo uso da tinta a óleo, material exigente que ele investiga em suportes diversos nas suas potencialidades com a paciência de profissional dedicado.
por Claudinei Roberto da Silva curador da Exposição PretAtitude
Com origem no universo pop dos quadrinhos e animações, Marcio Marianno, que também já enveredou pela linguagem do grafite, agora se encontra imerso na pintura óleo.
Seu trabalho, resultado de uma intensa pesquisa sobre a linguagem pictórica, busca afirmar o sujeito artista-homem-negro e sua posição na sociedade contemporânea, bem como discutir sua herança histórica. O que se percebe em suas pinturas é uma atmosfera de solidão, e um mergulho psicológico. A partir de sua própria imagem, Marianno encarna, como numa performance, um personagem que busca ao mesmo tempo seu lugar na contemporaneidade e sua ancestralidade.
Sua série de auto retratos, quase todos desprovidos de face, se constituem de imagens escuras e carregadas de memória, mas também trazem referências imagéticas e cores da pop art, as quais fazem parte de seu percurso como ilustrador, animador e editor de vídeos, além de skatista. Todos os trabalhos dizem respeito ao auto retrato, mesmo quando a imagem é um objeto, ou uma paisagem, todos são elementos potentes da memória e história do artista.
Produzida em camadas, as pinturas de Marianno discutem os fazeres tradicionais aliados à uma narrativa atual e íntima e enunciam um processo no qual em cada etapa o artista se torna um desbravador de si mesmo.
por Gina Dinucci Artista e educadora
Galo Shamo III
R$ 300,00Galo Shamo II
R$ 300,00Galo Shamo I
R$ 300,00Drongo Despenteado IV
R$ 350,00Drongo Despenteado III
R$ 350,00Drongo Despenteado II
R$ 350,00Drongo Despenteado I
R$ 350,00Print Identidade Edição Limitada
R$ 430,00
Galo Shamo III
2024
Monotipia em aquarela sobre papel Canson 300g
Tamanho do papel: 29,7 x 21 cm (A4)
Tiragem única
Onde:
Ateliê Gina Dinucci e Marcio Marianno
Avenida Ipiranga 103 – República, São Paulo , SP
R$ 300,00
1 em estoque